Tuesday, April 22, 2014

Querido Salgueiro Maia,

O meu pai diz que foste tu que nos deste a liberdade.

Eu disso da liberdade nunca entendi bem como se pode roubar ou retirar a alguém. Eu tenho para mim que a liberdade existe sempre mas, como ainda não te disse, nasci depois do 25 de Abril. Da liberdade, aprendi na escola que só ela só acaba quando começa a dos outros. Da liberdade aprendi que a bófia ta pode tirar, se não correres depressa o suficiente, e mais recentemente que o meu banco é que a tem toda.

Eu nasci aqui, no Hospital de Santa Maria, mas o meu pai não. O meu pai é de Figueira Pavão que fica na ilha do Fogo de Cabo Verde, acho que nunca lá foste. Nem eu lá fui, mas o pai lembra-me sempre que eu também sou foguense ou que somos de Djarfogu, como ele lhe chama. Eu, sou do Barreiro, que é como dizer que não sei bem de onde sou, mas acho que isso não importa nada agora.

Não estudei muito, porque os stores sempre acharam que eu falava de mais, e de tanto ouvir Gelson para a rua! Fartei-me daquilo e fui mesmo para a rua. Ao início, o meu pai queria muito que eu arranjasse um trabalho que fizesse de mim um homem como ele. Electricista é o que ele foi a vida toda, e é normal que desejasse o mesmo para mim.

Escrevi paredes por todo o Barreiro, da CUF a Samora Correia, o Gelson ou DJFogu como gostava de ouvir que me chamassem, estava assinado em tudo o que era local para que me vissem. E viam. Viam os amigos e os inimigos. Tantos eram mais os segundos que um dia a Bófia correu atrás de mim e mandou-me para a choldra. Foram só dois meses, querido Salgueiro Maia, dois meses em que decidi muita coisa para fazer dali para a frente, mas acho que isso não importa nada agora.

Saí com a decisão de ouvir o meu pai, que nunca me criticou nem atazanou. O pobre do homem nem tempo tinha para isso com dois trabalhos, um para pagar a água e outro para pagar a luz, como costumava dizer. Se calhar foi aqui que ele me falou de ti, um dia a ver televisão num programa da RTP2.

Desculpa a confiança, nunca te conheci, mas estou sempre a cruzar-me contigo. Da tua estátua em Santarém, onde fui com a minha escola no 9º. ano. Do teu círculo no Largo do Carmo, onde fui uma vez com o meu pai, à tua imagem pendurada do arco da Rua Augusta, onde estive com o meu filho no domingo passado. Não te conheci mas lembrei-me de ti agora, porque o meu pai já não está cá para me lembrar isso da liberdade.

Ouvi dizer que entraste na revolução quase que por acaso, que não sabias bem ao que ias, mas que foste. Que ficaste horas à espera que aquele senhor, da primavera que não passou só disso mesmo, saísse do quartel do Carmo. Que fizeste aquilo tudo mas que voltaste para casa sem pedir nada em troca, mas acho que isso não importa nada agora. Que de ninguém te conhecia, ao falar pouco e ao deixar de falar logo a seguir, foste um herói. Não por seres especial, mas por seres normal, por seres como eu e todos os outros somos, ou como diz na Wikipédia, por teres atributos normais necessários para superar de forma excepcional um problema de dimensão épica.

Por isso quero te perguntar, o que é então a liberdade? Sei que não vais responder, mas eu vou continuar a perguntar.

Abraço meu, e do meu filho Ricardo
Gelson Ataíde (Trabalhador da C.M. do Barreiro)
22 de Abril de 2014

Friday, April 4, 2014

Querido Filho,

Não te preocupes, que não estou chateado contigo.

Compreendo a tua viagem para esse sítio frio onde estás agora, feio e escuro, mas onde tu podes ser mais feliz do que aqui. Compreendo que tenhas saído daqui à pressa, sem grandes planos do que te vai acontecer a seguir. Compreendo que tenhas entrado naquele avião, com lágrimas de quem tem torcicolos de saudade. Compreendo e não estou chateado contigo.

Como sabes, o meu nome é Arménio, como o teu bisavô, que emigrou para França, para trabalhar na Rue Duperré. Mas sou também Jorge, como o meu pai, que emigrou para a Suíça para ganhar a vida nas estradas de Basel Stadt. Sou assim Arménio Jorge, filho e neto de emigrantes.

Como tu, sou filho e neto de homens que tiveram de partir, um deles já era casado e pai de filhos, e o outro casando à pressa levou a tua avó com ele. Não nasci fora do país, porque a minha mãe não era feliz por aqueles lados. Tinha sido professora de francês e aquilo de lavar pratos num restaurante em que todos falavam alemão, provocava-lhe ruídos na motivação. Se hoje ainda sou português, a responsabilidade é dela.

Gosto de pensar que somos todos emigrantes, meu filho. De alguma forma, nascemos num sítio, passamos por outros e na maioria das vezes escolhemos um local muito diferente para fazer a nossa vida. Tantos foram os que partiram e foram felizes nas suas descobertas, que eu quero acreditar que és apenas mais um nessa gigantesca linha de emigrações.

Eu nunca emigrei, mas imagino um nosso tetravô a emigrar para a Índia, um outro antepassado no Brasil e vários a tentarem a sua sorte em África. Apesar de não sermos muitos, nós na nossa família sempre emigrámos, talvez seja essa a nossa vocação, nascermos aqui e espalharmo-nos por todo o lado. Nisso tu, ao contrário de mim, estás a seguir a tradição familiar.

A mim, interessa-me (e muito) os acasos que me fizeram a mim. Entre idas e voltas, lutas por melhores oportunidades, sou o somatório de muitos acasos. Nem sei se o meu pai teria casado com a minha mãe se não tivesse pressionado por uma partida inesperada para a Suíça.

Mas mais uma vez te digo, querido filho, não estou chateado contigo. Partiste e, de uma maneira ou outra, hás-de voltar. Se não for nesta geração, talvez numa próxima e mesmo ao acaso, fará tudo sentido para os que virão depois de ti. Nisso, o universo fez-nos a todos presentes de muitas emigrações.

Sê feliz, serás sempre bem vindo,
Arménio Jorge (Técnico de Aeronáutica)
4 de Abril de 2014