Thursday, October 16, 2014

Querido Senhor Candidato a Primeiro Ministro

Serei maioria ou minoria?

Se acordar em horas matinais e entrar num transporte público, sou maioria.
Se achar que não devo sair de casa sem um beijo aos que amo, sou minoria.

Se só vou ver espectáculos quando me oferecem o bilhete, sou maioria.
Se elogio um colega por receber um prémio ao qual também concorri, sou minoria.

Se acho que os políticos deveriam ser melhores do que são, sou maioria.
Se acho que devo tomar partido por um político que me agrada, sou minoria.

Se em 1974, acho que casar é a única solução para a minha vida, sou maioria.
Se em 2014, acho que casar é uma boa solução para a minha vida, sou minoria.

Nunca gostei de maiorias nem minorias absolutas, senhor candidato a Primeiro Ministro, mas ser romântica e acreditar em coisas e ideias, ainda é uma opção política que decido assumir. Espero, sinceramente, que o senhor, tome isso em consideração, pois ainda não percebi bem em que é que acredita. Dirá que sou ingénua e demasiado nova para entender o fenómeno, verdade que sou nova e cheia de ideias ainda para acontecer, mas acredito que sem ideias não vale a pena uma candidatura a nenhum cargo.

Gostava de contar com o seu sorriso ao ler esta carta. Não um irónico, mas um inocente e sincero sorriso de quem se vê como um eterno estudante de ideias para um programa de governo. Acredito que governar não é governar, mas é ter ideias de como governar, porque os governos e desgovernos dos países dependem de demasiadas variáveis que concorrem para o perigo de não ter ideias de como devemos nos governar.  

Ainda estudo formas de entender melhor a história dos países e dos povos que os fazem. Mas tenho já a certeza que um território sem ideias é apenas um local num mapa, e um povo sem uma vontade e  um projecto comum é apenas um conjunto de pessoas com um nacionalidade escrita num documento. As pessoas fazem o povo e o povo faz o seu país. Que ideia tem das pessoas que quer que o elejam?

Vou votar em si, acho, porque parece ter ideias e porque parece ser boa pessoa. Como vê estou, outra vez a ser romântica e a fiar-me em pareceres, mas assim sou e quero continuar a ser. Por favor, tente entender este ponto de vista, comum a tantas outras pessoas. Queremos ideias pelas quais trabalhar, queremos ideias pelas quais lutar. Ideias que façam sentido, por favor. E é o único favor que peço.

Desejo-lhe as melhores ideias possíveis e até algumas impossíveis. Conta comigo para as melhores, que eu assim as ache.

Cordialmente,
Victoria Gomes de Sá (Estudante de história medieval portuguesa)
16 de Outubro de 2014

Wednesday, May 21, 2014

Querido Parlamento Europeu,

Não gosto de poder, mas quero poder crer que lhe posso dizer o que eu bem entender.

Escrevo-lhe em português, que é a minha língua, e aparentemente uma das suas também. Escrevo-lhe por entender que me vai entender sobre esta questão do poder. O que é isso do poder? Uma forma de controlar a nossa vontade por cima da dos outros, isto aos humanos, que aos animais é apenas o exercício de uma força maior sobre uma força menor, já que nas plantas não haverá muito raciocínio sobre isso, apenas o poder de existir mais e perdurar mais longe, o que também é uma forma de poder.

Somos quase 500 milhões de europeus, e apesar de muitas serem as línguas que falamos, e ainda mais as que ouvimos, todos estaremos de acordo sobre a importância da palavra poder. E quem representa o poder dos europeus? Segundo o tratado de Lisboa cabe-lhe a si essa honrosa tarefa, dividida com a Comissão Europeia e com o Conselho Europeu. A honrosa tarefa de representar o povo europeu nas suas múltiplas cinco centenas de milhões de opiniões.

Terão os europeus a vontade de lhe ceder o poder? O povo escolhe os seus eleitos e os seus eleitos representam as decisões do povo. Sendo assim, será seu o poder de mandar em nós europeus nos próximos cinco anos? Não o quero assustar, mas ter poder sobre tanta gente deve lhe dar calafrios de responsabilidade. Pelo menos a mim daria, mas eu não gosto de poder, como lhe disse antes.

Eu posso não gostar de poder, nem de entender essa coisa da Europa como um clube de democracias, países, povos, clubes que lutam numa espécie de liga dos campeões para decidir quem ganha a taça. Umas vezes ganha um clube vermelho, outras, um azul, e ainda outra, mas menos, um amarelo. Mas pelos vistos só um pode ganhar e mandar, á vez. Aos clubes da Europa agrada-lhe essa competição por taças e medalhas de ouro. Mesmo uma menção honrosa pode ser disputada como se de um campeonato do mundo se tratasse.

Deve estar agora a perguntar-se qual é o assunto desta carta? Nenhum, respondo-lhe eu. Não tenho assunto sobre poderes institucionais, mas acredito que a democracia também é opinar e representar uma vontade, mesmo que de não poder. Eu sei, é coisa estranha, a democracia, em que um povo (qualquer que ele seja) pode opinar e decidir não ter um assunto definido, não querer votar ou participar. Mas essa é a beleza da democracia, a deriva das opiniões. O inseguimento de uma opinião única define o nosso sistema e é uma trabalheira para o controlar, mas essa é a vontade do seu povo, ser incontrolavelmente opinativo.

Mas como se pode controlar a opinião de um povo, ou a sua decisão sobre a quem dar o poder? Imaginei essa sua pergunta com a candura de um qualquer corredor alcatifado, ou até num elevador musicado com versões panpipe das suas províncias, perdão, estados membros, mais exóticos. Pode, é a minha resposta. Deixe-nos opinar indeterminadamente, que nunca chegaremos a uma conclusão coletiva a favor ou contra. Parece cruel? Não é, se comparado com o que havia antes de si na Europa, por isso não se preocupe, alegre-se e tome posse daqui a umas semanas. Já falta pouco para que as opiniões sobre si parem e o poder do silêncio se instale.

Quero por isso exercer aqui o direito de me marimbar. Como lhe disse, não gosto de poder mas lá que posso não gostar dele, posso.


Atentamente,
Gustavo Sorbene (Eurocético e aluno de Relações Internacionais)
21 de Maio de 2014

Friday, May 9, 2014

Querido Armando,

Li a sua carta e foi com espanto que dei por mim a responder.

Não imagina a felicidade de ler sobre si e a sua querida Lúcia. Faz muito tempo que não nos vemos, e é com saudades que recordo esses meses, passados a dar mergulhos na ribeira de Alhões. Não leve a mal que lhe diga que apesar das saudades, não me arrependo de nada. Espero que a torta da Ti Lúcia continue a ser feita com as melhores amêndoas das Campinas, e que o senhor continue a fazer as suas escapadinhas na pasteleira do seu primo.

Nunca imaginei encontrar uma carta sua no meu camarim. Como deve imaginar, a maior parte das cartas que me chegam em mão são de homens, que procuram um elogio fácil que me leve a dizer sim às suas solicitações. Digo sempre não, até porque o André, o meu namorado, é muito ciumento e estamos juntos há tanto tempo, que já nem me lembro da última vez que me aticei, a ler a carta de um fã.

A vida por aqui, como perguntou, vai bem e tenho tudo o que sonhei. Estou ao vivo todas as noites, excepto quarta, a tal que me serve para passear de dia e esquecer a noite, uma vez por semana. Vivo num lindo apartamento junto ao Bairro Alto e tenho um pequeno cão, que o André me ofereceu quando fiz os trinta. Pois é, já estamos juntos à cinco anos e apesar de nunca ser fácil todos os dias, ele compreende-me de uma maneira que nunca encontrei num homem. É como viver com a minha melhor amiga e dormir com o melhor dos maridos. Somos felizes, e se fosse só isso já era maravilhoso ter vindo para Lisboa.

Imagino que os dias por aí continuam iguais, que as colheitas e as vindimas continuem nos mesmos meses, e que o milho rei continue a fazer os homens arranjarem namoradas. Se o Armando, bem se lembra, foi assim que arranjei a minha primeira e última. Por falar nisso, como está a Julinha? Já deve ter casado, não? Com pais como o senhor e a Ti Lúcia, deve ter arranjado um belo partido. Conte-me disso assim que nos encontrarmos, nunca tive oportunidade de lhe explicar as coisas tim tim por tim tim.

Não me quero alongar, até porque me avisou da sua fraca vista, mas quero responder-lhe à pergunta que deixou para o fim da sua carta, e olhe que me fez ficar com os olhos aguados de lembranças. Prefiro não ir, sei que ela lhe disse e pediu para que eu fosse. Mas o filho que ela gostava de ter no funeral, fugiu daí e não voltará. A ir ao funeral do meu pai, iria a Sílvia Planté e não o Eurico Nunes, e não acho que a gente de Ferreiros estaria preparada para isso.

Sobre a sua visita surpresa a Lisboa, fica entre nós não se preocupe. Compreendo as suas razões e não se esqueça nunca, Armando, que foi e é a minha inspiração na vida. A visita ao seu roupeiro secreto, as provas de vestidos ao espelho do sótão e a partilha do seu sonho de vida comigo é e será sempre algo só nosso. Aliás, sem o seu empurrão teria casado com a sua filha e ainda hoje teria um roupeiro secreto escondido de todos.

Vou, então, pedir que entre no alinhamento da próxima semana e que realize finalmente o seu sonho tanto tempo adiado. Eu e o André seremos seu cúmplices, e não se preocupe com isso da idade, o nosso mais novo tem 64 anos e dança como a Ginger Rogers, em câmara lenta, mas lá que salta com o Fred Astaire, salta. Por isso imagino que a sua Briggite Delon será um sucesso na próxima semana.

Ps: Espere por mim à porta da Cister, conto com uma caixa de suspiros :-)

Beijufas e até segunda-feira
Sílvia Planté (Transformista freelancer)
9 de Maio de 2014

Tuesday, April 22, 2014

Querido Salgueiro Maia,

O meu pai diz que foste tu que nos deste a liberdade.

Eu disso da liberdade nunca entendi bem como se pode roubar ou retirar a alguém. Eu tenho para mim que a liberdade existe sempre mas, como ainda não te disse, nasci depois do 25 de Abril. Da liberdade, aprendi na escola que só ela só acaba quando começa a dos outros. Da liberdade aprendi que a bófia ta pode tirar, se não correres depressa o suficiente, e mais recentemente que o meu banco é que a tem toda.

Eu nasci aqui, no Hospital de Santa Maria, mas o meu pai não. O meu pai é de Figueira Pavão que fica na ilha do Fogo de Cabo Verde, acho que nunca lá foste. Nem eu lá fui, mas o pai lembra-me sempre que eu também sou foguense ou que somos de Djarfogu, como ele lhe chama. Eu, sou do Barreiro, que é como dizer que não sei bem de onde sou, mas acho que isso não importa nada agora.

Não estudei muito, porque os stores sempre acharam que eu falava de mais, e de tanto ouvir Gelson para a rua! Fartei-me daquilo e fui mesmo para a rua. Ao início, o meu pai queria muito que eu arranjasse um trabalho que fizesse de mim um homem como ele. Electricista é o que ele foi a vida toda, e é normal que desejasse o mesmo para mim.

Escrevi paredes por todo o Barreiro, da CUF a Samora Correia, o Gelson ou DJFogu como gostava de ouvir que me chamassem, estava assinado em tudo o que era local para que me vissem. E viam. Viam os amigos e os inimigos. Tantos eram mais os segundos que um dia a Bófia correu atrás de mim e mandou-me para a choldra. Foram só dois meses, querido Salgueiro Maia, dois meses em que decidi muita coisa para fazer dali para a frente, mas acho que isso não importa nada agora.

Saí com a decisão de ouvir o meu pai, que nunca me criticou nem atazanou. O pobre do homem nem tempo tinha para isso com dois trabalhos, um para pagar a água e outro para pagar a luz, como costumava dizer. Se calhar foi aqui que ele me falou de ti, um dia a ver televisão num programa da RTP2.

Desculpa a confiança, nunca te conheci, mas estou sempre a cruzar-me contigo. Da tua estátua em Santarém, onde fui com a minha escola no 9º. ano. Do teu círculo no Largo do Carmo, onde fui uma vez com o meu pai, à tua imagem pendurada do arco da Rua Augusta, onde estive com o meu filho no domingo passado. Não te conheci mas lembrei-me de ti agora, porque o meu pai já não está cá para me lembrar isso da liberdade.

Ouvi dizer que entraste na revolução quase que por acaso, que não sabias bem ao que ias, mas que foste. Que ficaste horas à espera que aquele senhor, da primavera que não passou só disso mesmo, saísse do quartel do Carmo. Que fizeste aquilo tudo mas que voltaste para casa sem pedir nada em troca, mas acho que isso não importa nada agora. Que de ninguém te conhecia, ao falar pouco e ao deixar de falar logo a seguir, foste um herói. Não por seres especial, mas por seres normal, por seres como eu e todos os outros somos, ou como diz na Wikipédia, por teres atributos normais necessários para superar de forma excepcional um problema de dimensão épica.

Por isso quero te perguntar, o que é então a liberdade? Sei que não vais responder, mas eu vou continuar a perguntar.

Abraço meu, e do meu filho Ricardo
Gelson Ataíde (Trabalhador da C.M. do Barreiro)
22 de Abril de 2014

Friday, April 4, 2014

Querido Filho,

Não te preocupes, que não estou chateado contigo.

Compreendo a tua viagem para esse sítio frio onde estás agora, feio e escuro, mas onde tu podes ser mais feliz do que aqui. Compreendo que tenhas saído daqui à pressa, sem grandes planos do que te vai acontecer a seguir. Compreendo que tenhas entrado naquele avião, com lágrimas de quem tem torcicolos de saudade. Compreendo e não estou chateado contigo.

Como sabes, o meu nome é Arménio, como o teu bisavô, que emigrou para França, para trabalhar na Rue Duperré. Mas sou também Jorge, como o meu pai, que emigrou para a Suíça para ganhar a vida nas estradas de Basel Stadt. Sou assim Arménio Jorge, filho e neto de emigrantes.

Como tu, sou filho e neto de homens que tiveram de partir, um deles já era casado e pai de filhos, e o outro casando à pressa levou a tua avó com ele. Não nasci fora do país, porque a minha mãe não era feliz por aqueles lados. Tinha sido professora de francês e aquilo de lavar pratos num restaurante em que todos falavam alemão, provocava-lhe ruídos na motivação. Se hoje ainda sou português, a responsabilidade é dela.

Gosto de pensar que somos todos emigrantes, meu filho. De alguma forma, nascemos num sítio, passamos por outros e na maioria das vezes escolhemos um local muito diferente para fazer a nossa vida. Tantos foram os que partiram e foram felizes nas suas descobertas, que eu quero acreditar que és apenas mais um nessa gigantesca linha de emigrações.

Eu nunca emigrei, mas imagino um nosso tetravô a emigrar para a Índia, um outro antepassado no Brasil e vários a tentarem a sua sorte em África. Apesar de não sermos muitos, nós na nossa família sempre emigrámos, talvez seja essa a nossa vocação, nascermos aqui e espalharmo-nos por todo o lado. Nisso tu, ao contrário de mim, estás a seguir a tradição familiar.

A mim, interessa-me (e muito) os acasos que me fizeram a mim. Entre idas e voltas, lutas por melhores oportunidades, sou o somatório de muitos acasos. Nem sei se o meu pai teria casado com a minha mãe se não tivesse pressionado por uma partida inesperada para a Suíça.

Mas mais uma vez te digo, querido filho, não estou chateado contigo. Partiste e, de uma maneira ou outra, hás-de voltar. Se não for nesta geração, talvez numa próxima e mesmo ao acaso, fará tudo sentido para os que virão depois de ti. Nisso, o universo fez-nos a todos presentes de muitas emigrações.

Sê feliz, serás sempre bem vindo,
Arménio Jorge (Técnico de Aeronáutica)
4 de Abril de 2014

Thursday, March 27, 2014

Querido Teatro,

Sou um actor amador com cerca de sessenta anos de vida, e quase quarenta anos de ti.

Comecei com vinte anos a gostar de ti. Apaixonei-me primeiro por ti e só depois pela Júlia. Conhecemo-nos naqueles tempos em que Portugal de um dia para o outro ficou todo com dezoito anos. Eu já tinha vinte, e o meu pai já andava com a conversa que era melhor eu ir para França, mas por um motivo qualquer apaixonei-me por ti e fiquei.

Fiquei, porque acredita, e ainda acredito, que tu vais mudar o mundo. Seja por naquela altura acharmos que até o Gil Vicente era comunista, seja por achar hoje que os jovens precisam do teatro para não se meterem noutras cenas mais anárquicas.

O mundo mudou, e muito. Já não tenho de demorar um dia inteiro para ir visitar os meus pais em Valongo do Vouga, já não tenho de ir para os ensaios às escondidas, já não tenho de inventar desculpas para ir à Mexicana com a Júlia. Tenho eu, agora, filhos. A autoestrada leva-me à casa, que os meus pais me deixaram, em três horas. E o Gil Vicente agora é, ou foi, um grande empreendedor português.

Mas há coisas que não mudaram: Continuo apaixonado por ti. A Júlia ainda me desafia para irmos à Mexicana com os nossos dois netos, e o meu filho emigrou para a França.

Por ti, fui D.João Tenório, Telmo, Vaqueiro, Carlos Maia, Evaristo, e até Dona Maria II. Fui rei, padre, nobre, camponês, ou um simples transeunte. De figurante em novelas da TVI até encenador de jovens lá do bairro, fui tantas coisas que já nem me lembro de todas. Lembro-me sobretudo dos amigos que não gostavam de ensaiar mas adoravam estrear. Lembro-me sobretudo da Júlia, com o Joaquim ao colo, na plateia do Teatro de Comédia. Lembro-me sobretudo de não querer ir para casa, nem para o trabalho no dia seguinte, onde a minha personagem era sempre a mesma.

Lembro-me de muitas coisas mas não me quero esquecer de nada. Não me quero esquecer do meu pai a vir à minha estreia do Falar Verdade a Mentir, e do que me disse no fim: Tu até tens jeito. Não me quero esquecer do Tó Fagundes, da Ritinha Saraiva, do Mestre Emílio e da grande Ivone Silva. Lembras-te dela aparecer lá com o marido? E não me posso esquecer daquele professor que nos disse que devíamos pagar para fazer teatro, como é que ele se chamava?

Não sou muito bom com as palavras, querido Teatro, mas tenho que agradecer-te quarenta anos em que fui centenas de outras pessoas, ao ponto de sentir que estou vivo há centenas de anos. 

Obrigado, e por favor não deixes de existir.
António Joaquim Morais (actor amador português)
27 de Março de 2014

Wednesday, March 19, 2014

Querido Pai,

Mais uma vez, esqueci-me do teu dia. 

Para não variar é neste e no dia do teu aniversário, que mais me esqueço de ti. Não porque faça de propósito, mas porque tanto penso nisso nos outros 363 dias, ou 364 nos anos bissextos, que acabo sempre por me lembrar de ti nos dias a seguir. Nesses dias a seguir lembro-me sempre, e isso já não pode ser assim tão mau para o teu filho.

Há o dia da mulher, da árvore, do fumador, da vitória do nosso clube, da liberdade, dos óscares e até o da queda de cabelo. São tantos os dias em que me lembro de ti que não será por dois dias por ano que vais achar que não te dou importância.

Dou-te importância pela forma como me ensinaste a ver filmes de cowboys, como me contaste a história do início do mundo e do esqueleto zarolho, de como me levaste a ver aquele jogador loiro a marcar golos no estádio de cimento, de como me mandavas ao café comprar maços de SG Gigante, e até de como me colocavas na traseira de uma carrinha de caixa aberta a gritar “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!” 

Faz o que eu faço, não faças o que eu digo. Foi uma frase que nunca me disseste, e que eu também nunca segui. Não vim da terra para a cidade, não fiz o exame da quarta classe, não estive quatro anos em África, não casei com 24 anos nem fui pai aos 25, não emigrei para o estrangeiro para alcatroar as estradas deles, não comprei e vendi andar atrás de andar até ter uma casa só minha, não joguei no totoloto todas as semanas, nem sequer tive um emprego como tu tens desde sempre. Mas acredito no que tu acreditas.

Acredito, como tu, que o trabalho e a honestidade compensam, e apesar de saber que ainda não comprei um Mini, nem fui para a América fazer filmes, continuo a trabalhar naquilo, que tu no início não gostaste, depois começaste a aceitar e que agora acreditas que aparentemente se para mim funciona, é porque vai continuar a funcionar.

Sei que ainda faltam algumas das coisas que sonhaste para mim, mas também sei que o mundo mudou muito e tu soubeste sempre evoluir de maneiras totalmente inesperadas, por isso continua a acreditar que este caminho meu, é também o teu caminho a continuar.

PS: Tens razão, Clint Eastwood diz-se Clinte Astróude.

Obrigado por me teres feito,
e até dia 20 de Março de 2015
Pedro Saavedra (artista português filho de um pai português)