Sou um actor amador com cerca de sessenta anos de vida, e quase quarenta anos de ti.
Comecei com vinte anos a gostar de ti. Apaixonei-me primeiro por ti e só depois pela Júlia. Conhecemo-nos naqueles tempos em que Portugal de um dia para o outro ficou todo com dezoito anos. Eu já tinha vinte, e o meu pai já andava com a conversa que era melhor eu ir para França, mas por um motivo qualquer apaixonei-me por ti e fiquei.
Fiquei, porque acredita, e ainda acredito, que tu vais mudar o mundo. Seja por naquela altura acharmos que até o Gil Vicente era comunista, seja por achar hoje que os jovens precisam do teatro para não se meterem noutras cenas mais anárquicas.
O mundo mudou, e muito. Já não tenho de demorar um dia inteiro para ir visitar os meus pais em Valongo do Vouga, já não tenho de ir para os ensaios às escondidas, já não tenho de inventar desculpas para ir à Mexicana com a Júlia. Tenho eu, agora, filhos. A autoestrada leva-me à casa, que os meus pais me deixaram, em três horas. E o Gil Vicente agora é, ou foi, um grande empreendedor português.
Mas há coisas que não mudaram: Continuo apaixonado por ti. A Júlia ainda me desafia para irmos à Mexicana com os nossos dois netos, e o meu filho emigrou para a França.
Por ti, fui D.João Tenório, Telmo, Vaqueiro, Carlos Maia, Evaristo, e até Dona Maria II. Fui rei, padre, nobre, camponês, ou um simples transeunte. De figurante em novelas da TVI até encenador de jovens lá do bairro, fui tantas coisas que já nem me lembro de todas. Lembro-me sobretudo dos amigos que não gostavam de ensaiar mas adoravam estrear. Lembro-me sobretudo da Júlia, com o Joaquim ao colo, na plateia do Teatro de Comédia. Lembro-me sobretudo de não querer ir para casa, nem para o trabalho no dia seguinte, onde a minha personagem era sempre a mesma.
Lembro-me de muitas coisas mas não me quero esquecer de nada. Não me quero esquecer do meu pai a vir à minha estreia do Falar Verdade a Mentir, e do que me disse no fim: Tu até tens jeito. Não me quero esquecer do Tó Fagundes, da Ritinha Saraiva, do Mestre Emílio e da grande Ivone Silva. Lembras-te dela aparecer lá com o marido? E não me posso esquecer daquele professor que nos disse que devíamos pagar para fazer teatro, como é que ele se chamava?
Não sou muito bom com as palavras, querido Teatro, mas tenho que agradecer-te quarenta anos em que fui centenas de outras pessoas, ao ponto de sentir que estou vivo há centenas de anos.
Obrigado, e por favor não deixes de existir.
António Joaquim Morais (actor amador português)
27 de Março de 2014
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