Li a sua carta e foi com
espanto que dei por mim a responder.
Não imagina a felicidade
de ler sobre si e a sua querida Lúcia. Faz muito tempo que não nos
vemos, e é com saudades que recordo esses meses, passados a dar
mergulhos na ribeira de Alhões. Não leve a mal que lhe diga que
apesar das saudades, não me arrependo de nada. Espero que a torta da
Ti Lúcia continue a ser feita com as melhores amêndoas das Campinas, e que o senhor continue a fazer as suas escapadinhas na
pasteleira do seu primo.
Nunca imaginei encontrar
uma carta sua no meu camarim. Como deve imaginar, a maior parte das
cartas que me chegam em mão são de homens, que procuram um elogio
fácil que me leve a dizer sim às suas solicitações. Digo sempre
não, até porque o André, o meu namorado, é muito ciumento e
estamos juntos há tanto tempo, que já nem me lembro da última vez
que me aticei, a ler a carta de um fã.
A vida por aqui, como
perguntou, vai bem e tenho tudo o que sonhei. Estou ao vivo todas as
noites, excepto quarta, a tal que me serve para passear de dia e
esquecer a noite, uma vez por semana. Vivo num lindo apartamento
junto ao Bairro Alto e tenho um pequeno cão, que o André me
ofereceu quando fiz os trinta. Pois é, já estamos juntos à cinco
anos e apesar de nunca ser fácil todos os dias, ele compreende-me de
uma maneira que nunca encontrei num homem. É como viver com a minha
melhor amiga e dormir com o melhor dos maridos. Somos felizes, e se
fosse só isso já era maravilhoso ter vindo para Lisboa.
Imagino que os dias por
aí continuam iguais, que as colheitas e as vindimas continuem nos
mesmos meses, e que o milho rei continue a fazer os homens arranjarem
namoradas. Se o Armando, bem se lembra, foi assim que arranjei a
minha primeira e última. Por falar nisso, como está a Julinha? Já
deve ter casado, não? Com pais como o senhor e a Ti Lúcia, deve ter
arranjado um belo partido. Conte-me disso assim que nos encontrarmos,
nunca tive oportunidade de lhe explicar as coisas tim tim por tim
tim.
Não me quero alongar,
até porque me avisou da sua fraca vista, mas quero responder-lhe à
pergunta que deixou para o fim da sua carta, e olhe que me fez ficar
com os olhos aguados de lembranças. Prefiro não ir, sei que ela lhe
disse e pediu para que eu fosse. Mas o filho que ela gostava de ter
no funeral, fugiu daí e não voltará. A ir ao funeral do meu pai,
iria a Sílvia Planté e não o Eurico Nunes, e não acho que a gente de Ferreiros
estaria preparada para isso.
Sobre a sua visita
surpresa a Lisboa, fica entre nós não se preocupe. Compreendo as
suas razões e não se esqueça nunca, Armando, que foi e é a
minha inspiração na vida. A visita ao seu roupeiro secreto, as
provas de vestidos ao espelho do sótão e a partilha do seu sonho de
vida comigo é e será sempre algo só nosso. Aliás, sem o seu
empurrão teria casado com a sua filha e ainda hoje teria um roupeiro secreto escondido de todos.
Vou, então, pedir que
entre no alinhamento da próxima semana e que realize finalmente o
seu sonho tanto tempo adiado. Eu e o André seremos seu cúmplices, e
não se preocupe com isso da idade, o nosso mais novo tem 64 anos e
dança como a Ginger Rogers, em câmara lenta, mas lá que salta com
o Fred Astaire, salta. Por isso imagino que a sua Briggite Delon será
um sucesso na próxima semana.
Ps: Espere por mim à
porta da Cister, conto com uma caixa de suspiros :-)
Beijufas e até segunda-feira
Sílvia Planté
(Transformista freelancer)
9 de Maio de 2014
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