Thursday, March 27, 2014

Querido Teatro,

Sou um actor amador com cerca de sessenta anos de vida, e quase quarenta anos de ti.

Comecei com vinte anos a gostar de ti. Apaixonei-me primeiro por ti e só depois pela Júlia. Conhecemo-nos naqueles tempos em que Portugal de um dia para o outro ficou todo com dezoito anos. Eu já tinha vinte, e o meu pai já andava com a conversa que era melhor eu ir para França, mas por um motivo qualquer apaixonei-me por ti e fiquei.

Fiquei, porque acredita, e ainda acredito, que tu vais mudar o mundo. Seja por naquela altura acharmos que até o Gil Vicente era comunista, seja por achar hoje que os jovens precisam do teatro para não se meterem noutras cenas mais anárquicas.

O mundo mudou, e muito. Já não tenho de demorar um dia inteiro para ir visitar os meus pais em Valongo do Vouga, já não tenho de ir para os ensaios às escondidas, já não tenho de inventar desculpas para ir à Mexicana com a Júlia. Tenho eu, agora, filhos. A autoestrada leva-me à casa, que os meus pais me deixaram, em três horas. E o Gil Vicente agora é, ou foi, um grande empreendedor português.

Mas há coisas que não mudaram: Continuo apaixonado por ti. A Júlia ainda me desafia para irmos à Mexicana com os nossos dois netos, e o meu filho emigrou para a França.

Por ti, fui D.João Tenório, Telmo, Vaqueiro, Carlos Maia, Evaristo, e até Dona Maria II. Fui rei, padre, nobre, camponês, ou um simples transeunte. De figurante em novelas da TVI até encenador de jovens lá do bairro, fui tantas coisas que já nem me lembro de todas. Lembro-me sobretudo dos amigos que não gostavam de ensaiar mas adoravam estrear. Lembro-me sobretudo da Júlia, com o Joaquim ao colo, na plateia do Teatro de Comédia. Lembro-me sobretudo de não querer ir para casa, nem para o trabalho no dia seguinte, onde a minha personagem era sempre a mesma.

Lembro-me de muitas coisas mas não me quero esquecer de nada. Não me quero esquecer do meu pai a vir à minha estreia do Falar Verdade a Mentir, e do que me disse no fim: Tu até tens jeito. Não me quero esquecer do Tó Fagundes, da Ritinha Saraiva, do Mestre Emílio e da grande Ivone Silva. Lembras-te dela aparecer lá com o marido? E não me posso esquecer daquele professor que nos disse que devíamos pagar para fazer teatro, como é que ele se chamava?

Não sou muito bom com as palavras, querido Teatro, mas tenho que agradecer-te quarenta anos em que fui centenas de outras pessoas, ao ponto de sentir que estou vivo há centenas de anos. 

Obrigado, e por favor não deixes de existir.
António Joaquim Morais (actor amador português)
27 de Março de 2014

Wednesday, March 19, 2014

Querido Pai,

Mais uma vez, esqueci-me do teu dia. 

Para não variar é neste e no dia do teu aniversário, que mais me esqueço de ti. Não porque faça de propósito, mas porque tanto penso nisso nos outros 363 dias, ou 364 nos anos bissextos, que acabo sempre por me lembrar de ti nos dias a seguir. Nesses dias a seguir lembro-me sempre, e isso já não pode ser assim tão mau para o teu filho.

Há o dia da mulher, da árvore, do fumador, da vitória do nosso clube, da liberdade, dos óscares e até o da queda de cabelo. São tantos os dias em que me lembro de ti que não será por dois dias por ano que vais achar que não te dou importância.

Dou-te importância pela forma como me ensinaste a ver filmes de cowboys, como me contaste a história do início do mundo e do esqueleto zarolho, de como me levaste a ver aquele jogador loiro a marcar golos no estádio de cimento, de como me mandavas ao café comprar maços de SG Gigante, e até de como me colocavas na traseira de uma carrinha de caixa aberta a gritar “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!” 

Faz o que eu faço, não faças o que eu digo. Foi uma frase que nunca me disseste, e que eu também nunca segui. Não vim da terra para a cidade, não fiz o exame da quarta classe, não estive quatro anos em África, não casei com 24 anos nem fui pai aos 25, não emigrei para o estrangeiro para alcatroar as estradas deles, não comprei e vendi andar atrás de andar até ter uma casa só minha, não joguei no totoloto todas as semanas, nem sequer tive um emprego como tu tens desde sempre. Mas acredito no que tu acreditas.

Acredito, como tu, que o trabalho e a honestidade compensam, e apesar de saber que ainda não comprei um Mini, nem fui para a América fazer filmes, continuo a trabalhar naquilo, que tu no início não gostaste, depois começaste a aceitar e que agora acreditas que aparentemente se para mim funciona, é porque vai continuar a funcionar.

Sei que ainda faltam algumas das coisas que sonhaste para mim, mas também sei que o mundo mudou muito e tu soubeste sempre evoluir de maneiras totalmente inesperadas, por isso continua a acreditar que este caminho meu, é também o teu caminho a continuar.

PS: Tens razão, Clint Eastwood diz-se Clinte Astróude.

Obrigado por me teres feito,
e até dia 20 de Março de 2015
Pedro Saavedra (artista português filho de um pai português)

Friday, March 7, 2014

Querida Primavera,

Hoje finalmente os nossos caminhos cruzaram-se.

Ainda na segunda-feira atravessei a serra à tua procura, mas apenas pedaços de neve perdidos pelos montes, e tu nada.

Na terça, fui ver a queima do careto enquanto tremia de frio à espera de notícias tuas, e tu nada.

Na quarta, a descer a raia a caminho de casa, nem a estrada via, e tu nada.

Hoje a meio da corrida, que insisto em fazer para me envergonhar junto aos grupos de idosos que me ultrapassam, reparei em ti.

Lá estavas tu na berma do caminho, amarela como só as canetas molin conseguiam ser.

Peguei em ti e coloquei-te na boca para te morder, azeda disseste bom dia pela minha boca e a caminho do esófago, tive a certeza, eras tu.

Há algo na Primavera que nos faz ser putos a fazer desenhos em pedaços de papel cinzento. Desenhos com andorinhas a voar, casa com porta e janela, um gigante cabeçudo com 3 ou 4 cabelos e claro, um sol a sorrir no canto superior direito.

Bem-vinda,
Pedro Saavedra (um artista português)
7 de Março de 2014